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FEB - A Taxa de Cambio na Formação Economica do Brasil

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Mensagem por Admin Sex maio 17, 2013 1:57 am

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A TAXA DE CÂMBIO EM FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL
Mauricio C. Coutinho*

1. Introdução
A preocupação com a taxa de câmbio tornou-se um dos traços fortes da economia do desenvolvimento de Celso Furtado, por diversas e compreensíveis razões. Como se sabe, imediatamente após a conclusão do programa de doutoramento em Paris, Furtado integrou-se aos quadros da CEPAL. Um dos pontos fortes dos diagnósticos da CEPAL sobre o atraso econômico latinoamericano era a tese de deterioração dos termos de troca, elaborada por Raul Prebisch. De modo mais amplo, Prebisch propunha que a teoria dominante do comércio internacional não constituía uma boa base para analisar-se a economia latino-americana (1*). Ao longo de toda a década de 1950 travou-se no continente uma controvérsia intensa sobre o comércio internacional, teoria e aplicações, centrada nas teses de Prebisch. Furtado, como boa parte do staff técnico da CEPAL, envolveu-se nos debates e difundiu seus termos em diversos textos.

Além disso, inflação e constrangimentos cambiais foram os dois principais temas do cenário econômico brasileiro no pós-guerra. Devido à alternância de políticas cambiais nas décadas de 1940 e 1950, o Brasil tornou-se uma espécie de campo de experimentação na área (2*). A diversidade de mecanismos de controle cambial proporcionou aos economistas brasileiros um refinamento na compreensão das questões cambiais e de suas implicações para a continuidade da industrialização.

Vê-se, portanto, que por diversos motivos – influência das idéias de Prebisch, debates em política econômica, premência das questões cambiais no pós-guerra – Furtado tornara-se um especialista em taxa de câmbio quando veio a redigir Formação Econômica do Brasil, em 1958 (3*). A questão é saber como o tratamento da temática cambial foi incorporado a este “...esboço do processo histórico de formação da economia brasileira” (FEB,21);(4*) vale dizer, em que medida e com que nuances a questão cambial aparece em uma obra que não é dedicada ao debate de políticas econômicas contingentes e que, embora represente uma aplicação do método histórico-estrutural de análise da realidade econômica, característico da CEPAL, de todo modo
constitui um trabalho de interpretação da história.

Notas: UNICAMP

1 As teses de Prebisch estão expostas em Prebisch (1949).
2 A este propósito ver Huddle (1964).
3 Uma boa evidência da expertise de Furtado à época está no recentemente publicado estudo sobre a
economia venezuelana, elaborado em 1957 (Furtado, 2008).
4 As citações de Formação Econômica do Brasil serão designadas por (FEB, número da página),
conforme a edição de 2008 (Furtado, 2008).



De antemão, sabem os leitores de Formação Econômica do Brasil que os mecanismos cambiais desempenham um papel decisivo nas teses de Furtado sobre a crise da economia cafeeira e a transição do sistema primário-exportador para uma economia industrial de mercado interno. Enfim, a temática cambial domina a bem conhecida Parte Cinco (Economia de Transição para um Sistema Industrial – Século XX) de Formação Econômica.
O presente trabalho tem por objetivo, além de apresentar os argumentos de Furtado a respeito do papel da restrição cambial e das políticas cambiais na crise da economia cafeeira e na industrialização por substituição de importações (o que será feito nas seções 5 e 6), recuperar as referências à questão cambial nos ciclos primárioexportadores da economia escravista (seção 4). Entendo que as mudanças na abordagem da temática cambial ao longo do processo histórico estão relacionadas à visão de Furtado sobre o fluxo de renda nos sistemas escravista e não-escravista (e monetário versus não-monetário), nos diversos ciclos econômicos (objeto da seção 3). Finalmente, por acreditar que o tratamento da questão cambial nos textos de caráter histórico que antecedem Formação Econômica do Brasil facilita o entendimento das soluções adotadas nesta última obra, será feita uma menção introdutória a estes textos (seção 2).


2. A taxa de câmbio nos textos que antecedem Formação Econômica do Brasil


Afora a tese doutoral de Furtado (Furtado, 2000), Formação Econômica do Brasil foi antecedido por dois trabalhos de natureza eminentemente histórica, que podem ser considerados seus precursores. O primeiro é um artigo publicado em 1950 na Revista Brasileira de Economia, Características Gerais da Economia Brasileira(Furtado, 1950). O segundo é um livro de 1954, A Economia Brasileira: contribuição à análise de seu desenvolvimento (Furtado, 1954), que teve apenas uma edição e pequena difusão. Furtado refere-se a este livro no prefácio de Formação Econômica do Brasil. A rigor, Formação veio a representar a continuidade e a terminação dos esquemas de abstração da história já delineados em A Economia Brasileira.

Vale a pena destacar o caráter peculiar do artigo publicado em 1950, no qual Furtado pretende evidenciar a origem dos três principais fatores de desequilíbrio 3 presentes na economia brasileira, a saber, a piora nas relações de trocas, a elevação
persistente da taxa cambial e a inflação crônica. Por atribuir, no espírito das contribuições da CEPAL, precedência aos fatores de natureza cambial, Furtado realiza uma digressão histórica sobre a atuação de tais fatores na “economia de tipo colonial” e
na fase de “desenvolvimento de um núcleo industrial”. A economia colonial, baseada na exportação de produtos primários e na importação de artigos de consumo de natureza industrial, teria preponderado até 1914, enquanto o núcleo industrial, que teve um primeiro impulso no início da República e retomou certo dinamismo no período da Primeira Guerra Mundial, afirmou-se no início da década de 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial.

Em termos resumidos, o argumento de Furtado é de que na “economia de tipo colonial” as perdas resultantes da piora das relações de troca, ocorrida tanto secularmente quanto de modo agudo nas crises exportadoras, são transferidas (por meio
da taxa cambial) dos reduzidos grupos exportadores à grande massa consumidora de produtos importados. A crise de 1929, por sua extensão e pelo grau de desenvolvimento já alcançado pelo país, impediu a solução tradicional de elevação da taxa cambial até o restabelecimento do “... equilíbrio entre o poder de compra interno e a disponibilidade de divisas” (Furtado, 1950, p. 27). A redução das importações requerida por esta modalidade de recuperação do equilíbrio teria levado a uma paralisia econômica, e daí a solução de utilização controlada das disponibilidades de divisas e a emergência de um resultado econômico decisivo, embora não-intencional: se as classes exportadoras conseguiram proteger razoavelmente sua renda, a redução do coeficiente de importações proporcionou um forte impulso à indústria local(5*).

A explicação de Furtado para o fortalecimento do núcleo industrial após a crise de 1929 em Características Gerais da Economia Brasileira representa uma versão preliminar e compacta da que viria a ser desenvolvida em Formação Econômica do
Brasil. No momento, o importante é destacar dois aspectos do artigo de 1950, os quais podem ser considerados parte da abordagem geral de Furtado. Em primeiro lugar, os problemas econômicos recentes (no caso, depreciação da moeda nacional e inflação) são sempre referidos a suas raízes históricas. Em segundo lugar, o funcionamento do mecanismo cambial constitui um dos elementos centrais no estabelecimento de distinções entre a economia primário-exportadora e a economia em vias de
industrialização, ou melhor, no estabelecimento de distinções entre as acomodações que sucederam as crises exportadoras na “economia de tipo colonial” e a reação industrializante que se seguiu à crise de 1929.

Nota:

5. Furtado conclui: “Dois fatores ... atuaram em forma convergente: a) a redução do coeficiente de importações das classes de médias e altas rendas, e b) a impossibilidade de continuarem no mesmo ritmo as inversões no setor de economia colonial. O choque causado pela crise externa deu assim à economia brasileira oportunidade de desenvolver seu mercado interno.” (Furtado, 1950, p. 28).



Em A Economia Brasileira, Furtado também refere os problemas apresentados pela economia brasileira no pós-guerra a suas raízes históricas. Na verdade, esta obra contém, além da reconstituição dos mecanismos econômicos básicos da economia brasileira nas diversas fases históricas, uma digressão mais extensa e geral sobre o crescimento econômico (6*). Na próxima seção retomaremos um dos elementos desta digressão, a reconstituição do fluxo circular da renda nos diversos ciclos e a idéia de “lucro industrial”. No momento, vamos nos concentrar no papel desempenhado pelos ajustamentos cambiais na crise da economia colonial e no “deslocamento do centro dinâmico”(7*).

Após um tratamento sumário do “ciclo da economia colonial exportadora escravocrata”, Furtado compara os mecanismos de defesa do setor exportador depois da introdução de trabalho assalariado (produção de café) com os que vigoravam na economia exportadora-escravista. O argumento principal é de que na economia cafeeira, a exemplo do que ocorria na economia escravista, os aumentos de preço do produto exportado convertiam-se em elevação de lucros e as baixas cíclicas provocavam redução dos lucros. A introdução do trabalho assalariado, contudo, introduziu obstáculos adicionais à adaptação aos ciclos do mercado internacional. Para começar, a transição para o trabalho assalariado tornou ainda mais impraticável o funcionamento do padrão-ouro (8*).

As economias primário-exportadoras, de modo geral, caracterizam-se por uma elevada participação do comércio internacional
na geração de renda. Isso significa que a contração das reservas metálicas nos momentos de crise, o mecanismo clássico de ajustamento do padrão-ouro, teria que ser de imensa magnitude em relação ao tamanho da economia e ao tamanho da população. Implicaria também a necessidade de preservação de enormes reservas monetárias, pois sem elas as economias estariam sujeitas a “... desequilíbrios externos intermitentes que se traduziam em flutuações da taxa cambial” (Furtado, 1954, p. 95).

Notas:
6. Nos capítulo I (As categorias fundamentais do processo histórico de crescimento econômico) e V (Formulação teórica do problema do crescimento econômico). Este último viria a ser transposto para o livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (Furtado, 1961).
7. Conforme os Capítulos III (A nova economia colonial e seus mecanismos de defesa) e IV (A crise do
setor colonial e o deslocamento do centro dinâmico).
8. Sobre as características do padrão-ouro e as dificuldades de os países periféricos a ele se adaptarem, ver
Eichengreen (1998). O próprio Prebisch (Prebisch, 199?) tratou extensamente das dificuldades impostas
pelo padrão-ouro aos países latinoamericanos.


De acordo com Furtado, na economia exportadora-escravocrata em sua forma pura este problema não existiria porque “...Sendo a procura monetária igual às exportações, é evidente que toda ela poderia transformar-se em importações sem que
por essa razão surgisse qualquer desequilíbrio”(Furtado, 1954, p. 95). Em suma, sendo a moeda utilizada apenas nas transações internacionais, uma contração dos valores exportados provocaria apenas um ajustamento no nível de importações, correspondente à retração dos lucros dos produtores.

O desequilíbrio externo surge exatamente nas situações em que “... a procura monetária tende a crescer mais do que as exportações...” (Furtado, 1954, p. 95), situações ligadas à formação de um mercado de trabalho assalariado. A razão é simples. Na economia assalariada, o pagamento de fatores aciona o multiplicador de renda monetária e, em decorrência, amplifica a importação de bens de consumo para os assalariados (9*) Nos momentos em que a queda de preços dos produtos exportados reduz a oferta de divisas, a renda e a demanda por importações reagem com defasagem. Nessas condições, a mobilização de reservas internacionais requerida para equilibrar o balanço de pagamentos seria elevada, fator agravado ainda pela tendência concomitante à saída de capitais e à deterioração dos termos de troca.10 Daí que Furtado conclua: “À
proporção que a economia escravocrata-exportadora é substituída no Brasil por uma nova economia colonial, com base no trabalho assalariado, torna-se impraticável o funcionamento do padrão-ouro e, consequentemente, acentuam-se os desequilíbrios externos.” (Furtado, 1954, p. 98)

Além disso, a correção dos desequilíbrios do balanço de pagamentos por meio da desvalorização da moeda nacional protege os exportadores e atenua a contração de sua margem de lucro, ou seja, prejudica os consumidores de artigos importados e
concede uma espécie de prêmio aos exportadores. O ajustamento da taxa cambial ocasionou uma transferência de renda dos importadores para os exportadores ou, visto de outro ângulo, estabeleceu uma assimetria entre as fases de auge e declínio cíclico:
enquanto no auge os exportadores concentram os ganhos (elevam seus lucros), no declínio os importadores arcam com grande parte das perdas. Ao impedirem a redução da oferta e uma baixa ainda maior dos preços do café, as políticas de proteção da produção cafeeira através da regulação de estoques, praticadas após 1906, agravaram a “socialização das perdas”.

Notas:
9. Presume-se que a indústria local seja inexistente ou pouco expressiva.
10. Nas economias coloniais “... é necessário que passe algum tempo para que a contração do valor das exportações exerça seu pleno efeito sobre a procura de importações... Por outro lado, ... tem início uma piora na relação dos preços de intercâmbio. A esses dois fatores vêm acumular-se os efeitos da fuga de capitais.” (Furtado, 1954, p. 97 e 98)


A plenitude cambial provocada pela entrada de empréstimos externos destinados ao financiamento das compras de café pelo governo levou a que o Brasil se encontrasse em plena prática da conversibilidade no advento da crise de 1929. O resultado foi o rápido esgotamento das reservas metálicas e a postergação da depreciação da moeda nacional, um instrumento automático de proteção da fuga de capitais. De todo modo, a desvalorização da moeda nacional, quando sobrevinda, restabeleceu o mecanismo habitual de atenuação do impacto da baixa de preços sobre os produtores de café (e demais produtos agrícolas de exportação) e retardou a retração da oferta. A desvalorização cambial, por si só, retardaria o restabelecimento de equilíbrio entre oferta e demanda de café. A política de compra e destruição dos estoques que o governo
veio a prolongar esse processo de ajustamento.

Furtado assinala que a política de aquisição do café teve um importante efeito derivado: representou um fator de manutenção, ou até mesmo expansão, do nível de renda. Sobrevém uma situação em que a demanda por produtos externos supera largamente a disponibilidade de divisas; enfim, o desequilíbrio externo sustenta a elevação da taxa de câmbio. A conseqüência é a emergência de uma não planejada política de estímulo à produção local, já que o desvio da demanda em direção aos bens produzidos localmente leva ao deslocamento do centro dinâmico da economia, do setor exportador para o mercado interno. Em suma, as elevações na taxa de câmbio garantiram uma modificação de preços relativos (produtos produzidos localmente versus importações) capaz de estimular a produção nacional. Como se vê, em A Economia Brasileira encontra-se já uma plena explicitação do papel decisivo do mecanismo cambial na manutenção do equilíbrio entre oferta e
procura, um processo que acaba por reconfigurar a estrutura produtiva do país.

3. Fluxos de renda e taxa de câmbio

Em Formação Econômica do Brasil, Furtado sistematiza a representação analítica dos grandes ciclos exportadores brasileiros (cana-de-açúcar, mineração, café), bem como da dinâmica de transição para a industrialização. No limite, esta representação analítica apóia-se em uma adaptação criativa do fluxo circular de renda aos diversos ciclos, a qual se vale de instrumentos de análise e de categorias econômicas. As categorias são bem representadas por dicotomias básicas: escravidão versus trabalho assalariado; renda monetária versus renda não-monetária; fatores livres versus fatores escassos; produção de subsistência versus produção excedentária; setor dinâmico (de alta produtividade) versus setor de subsistência. O principal instrumento de análise econômica é o multiplicador de gastos, que atua apenas na esfera das transações monetárias. A dinâmica de preços relativos (preferencialmente, preços internos versus externos) e o equilíbrio entre oferta e demanda completam o quadro de instrumentos de análise(11*).

A reconstituição analítica do ciclo canavieiro fornece um bom exemplo do emprego de categorias e instrumentos de análise econômica. No modelo de plantation canavieira de Furtado, toda a renda monetária concentra-se nas transações
internacionais. As transações ocorridas no mercado interno são não-monetárias ou absolutamente residuais. A mão-de-obra é escrava e, portanto, não paga. A unidade produtiva principal, o engenho de açúcar – a planta industrial e as lavouras em torno -, constitui o setor de alta produtividade. As atividades econômicas restantes são consideradas “de subsistência”. A expansão da produção é extensiva, não há progresso técnico na agricultura. A terra é o fator livre, ou quase livre, e o capital (incluindo os escravos) o fator escasso. O multiplicador de renda não atua, simplesmente porque não há pagamento de fatores no território nacional – os lucros convertem-se em despesas de importação (12*)

Cabe observar que o ponto-chave no esquema analítico de Furtado é o pagamento (em moeda) de fatores.13 É por essa razão que a plantation de café da segunda metade do século XIX veio a representar um elemento de ruptura na antiga
dinâmica exportadora: nela criou-se um mercado de trabalho livre e, deste modo, passou a haver pagamento de fatores no território. Aciona-se o multiplicador. É exatamente na criação de um mercado de trabalho assalariado e na decorrente atuação plena do multiplicador de gastos que radica a possibilidade de transição para um sistema industrial.

Nota:
11 Para um apresentação mais desenvolvida do esquema analítico de Furtado, Coutinho (2008).
12 Os engenhos teriam como única transação expressiva fora da unidade produtiva as aquisições de lenha e gado.
13 A noção de “lucro industrial”, apresentada detalhes no Capítulo I de A Economia Brasileira, é a chave para o entendimento da importância do pagamento de fatores no esquema analítico de Furtado (ver Coutinho, 2008). Em Formação Econômica do Brasil, Furtado distingue nos mesmos termos – haver ou não pagamento de fatores – a economia industrial da economia exportadora escravista. A questão está bem estabelecida no capítulo 9 (Fluxo de renda e crescimento): “Numa economia industrial a inversão faz crescer diretamente a renda da coletividade em quantidade idêntica a ela mesma. Isto porque a
inversão se transforma automaticamente em pagamento a fatores da produção.... A inversão feita numa economia exportadora-escravista é fenômeno inteiramente diverso. Parte dela transforma-se em pagamentos feitos no exterior...; a maior parte, sem embargo, tem como origem a utilização mesma da força de trabalho escravo. Ora, a diferença entre o custo de reposição e de manutenção dessa mão-deobra e o valor do produto do trabalho da mesma era lucro para o empresário. Sendo assim, a nova inversão fazia crescer a renda real apenas no montante correspondente à criação de lucro para o empresário. Esse incremento de renda não tinha, entretanto, expressão monetária, pois não era objeto de nenhum pagamento.”(FEB, 85)


Adicionalmente, e como foi visto em A Economia Brasileira, o pagamento de fatores altera a dinâmica cambial. O contraste entre os dois primeiros grandes ciclos primário-exportadores brasileiros (açúcar e mineração) e o terceiro (café) é decisivo.
Nos ciclos primário-escravistas, a quase totalidade das transações monetárias dá-se entre o país – melhor dito, o território colonial - e o exterior. O valor adicionado é quase idêntico aos lucros, diretamente representados na moeda do comércio internacional(14*) A alta cíclica de preços e produção reflete-se imediatamente em elevação dos lucros, assim como a baixa reflete-se em contração. A queda dos preços, seja pelo abarrotamento do mercado internacional, seja pela concorrência de outros países, diminui o fluxo de renda monetária e, imediatamente, os lucros e o montante de importações e/ou o pagamento de serviços no exterior. A circulação monetária no mercado interno não se contrai, simplesmente porque era inexistente ou residual.

Em suma, nos períodos de baixa cíclica as unidades produtivas exportadoras definham e o entorno é pouco afetado porque, na visão de Furtado, resume-se a “economia de subsistência”. Havendo terra disponível, uma parte da população liberada
na atividade principal pode migrar para o “setor de subsistência”, e isso em tese não afeta a renda monetária. De todo modo, a queda brusca da capacidade de importar leva a uma nova situação de equilíbrio, com menores lucros e menor demanda por produtos importados, inclusive escravos.

Ora, na medida em que a renda monetária na economia exportadora-escravista corresponde apenas ao comércio exterior, é como se a existência de uma moeda nacional, bem como as relações de troca entre a moeda nacional e o padrão monetário
utilizado nas transações internacionais, fossem irrelevantes. A atividade econômica – exportações – gera, diretamente, divisas. Em princípio, portanto, não haveria necessidade de examinar as características e vicissitudes do padrão monetário nacional e as relações de troca com a moeda de comércio internacional; em outras palavras, a questão cambial não se colocaria.15 Veremos adiante, no entanto, que Furtado faz breves menções a flutuações cambiais durante o período colonial.


Nota:
14.Em Formação Econômica do Brasil, Furtado admite que uma parte significativa dos lucros da
mineração é absorvida por impostos.


A transição para o regime de trabalho assalariado acarreta uma mudança radical no cenário cambial, porque nele há pagamento de fatores em moeda nacional. Já vimos como Furtado examina, em seu livro de 1954, as dificuldades na adaptação de uma economia dominantemente primário-exportadora às regras do padrão-ouro, um ponto explorado com maiores detalhes em Formação Econômica do Brasil. Adiante voltaremos ao tema, porém, assinale-se que o fato de o lucro não mais representar a totalidade das rendas monetárias confere um novo significado à questão cambial. De um lado, a contração da circulação monetária provocada por déficits no balanço de pagamentos afeta a economia de modo muito mais amplo – não apenas os lucros estão em jogo. De outro, cresce o grupo dos consumidores de produtos importados e com isso a importância das variações da taxa de câmbio, admitindo-se que não se consiga sustentar regra de relativa estabilidade cambial prevista pelo padrão-ouro. Se ao quadro for adicionada a existência de produtores voltados ao mercado interno e, portanto, a concorrência entre produtos importados e nacionais, a incorporação da taxa de câmbio ao esquema de análise torna-se decisiva.

4. Formação Econômica do Brasil: as referências à questão cambial na economia primário-exportadora de base escravista

Como foi dito, no esquema de Furtado a moeda é um fator quase irrelevante na economia exportadora-escravista, seja por não haver circulação monetária no território colonial, seja por as exportações proporcionarem acesso imediato à moeda do comércio internacional. No entanto, em algumas passagens de Formação Econômica do Brasil encontram-se referências a questões monetárias e cambiais durante o período colonial.

A primeira menção está no capítulo 3 (Razões do monopólio), mais precisamente, em um comentário à colonização espanhola. Furtado refere-se ao imenso afluxo de metais preciosos para a metrópole e às transformações sofridas pela economia
espanhola, para concluir que o aumento no fluxo de renda gerado por gastos públicos e privados provocou inflação e déficit no balanço de pagamentos. Embora a inflação tenha se espalhado para os demais países do continente europeu, o nível de preços na Espanha teria subido mais do que o dos países vizinhos, o que trouxe persistente déficit nas transações internacionais e total desestímulo à produção local. A abundância de metais preciosos atrofiou a produção na Espanha(16*)

Nota:
15. O que vale tanto para o período de dominância do padrão-ouro como para o período anterior, em que o próprio conteúdo metálico da moeda determinava suas relações de troca com as congêneres internacionais.
16. A situação da Espanha no período de abundância de metais preciosos na América espanhola e a fuga de metais provocada pelos sucessivos déficits comerciais são temas recorrentes na discussão dos economistas monetários, desde o século XVII.


Uma segunda menção encontra-se no capítulo 4 (Desarticulação do sistema), no qual se discute o declínio da produção açucareira no Brasil, em virtude da concorrência caribenha. Furtado assinala os impactos da queda no volume das exportações e no preço do açúcar exportado, ao final do século XVII. Os argumentos principais dirigem-se à significativa queda da renda real da produção açucareira e à decorrente depreciação da moeda portuguesa em relação ao ouro. Sendo Portugal o principal abastecedor da colônia, “... essa desvalorização significaria uma importante transferência de renda real
em benefício do núcleo colonial.” (FEB, 45) No entanto, pondera Furtado, o valor dos produtos de exportação portugueses estaria fixado em ouro; as mercadorias de outros países, importadas por Portugal e reexportadas ao Brasil, tinham seu preço naturalmente vinculado ao ouro. A conclusão é de que a desvalorização da moeda portuguesa reverteu em benefício dos exportadores metropolitanos. Em termos precisos, “... a depreciação minorava os prejuízos dos comerciantes que tinham capitais empatados nos negócios do açúcar...” (FEB, p. 45, rodapé).

O esquema, portanto, é o seguinte: 1. os portugueses depreciam sua moeda como forma de diminuir a perda dos produtores/comerciantes de açúcar com a queda das exportações; 2. a colônia não se beneficia da depreciação, porque continua a importar as mercadorias que consome a preços do mercado internacional. Ora, com a depreciação cambial os portugueses lograram diminuir a perda de poder aquisitivo, em moeda local, das exportações; ou seja, cada libra obtida proporciona maior poder de compra no mercado local. A decorrência lógica é que, nestas condições, ganhos haveria: i) apenas na relação de troca entre os exportadores e os produtores metropolitanos; ii) se os importadores no Brasil não tivessem acesso à moeda do comércio internacional e fossem obrigados a pagar pelas mercadorias vindas de Portugal (cotadas a preços internacionais) na moeda metropolitana.

Em suma, para sustentar suas conclusões, o texto de Furtado teria que explicitar a triangulação entre produtores coloniais, negocistas metropolitanos, mercado internacional, bem como discriminar as operações que se faziam em moeda
internacional e em moeda metropolitana. Note-se que no restante do texto a moeda nacional (metropolitana) é pouco mencionada, porque se presume que as transações internacionais são inteiramente contabilizadas e liquidadas na moeda de comércio internacional; ou, alternativamente, que a relação de troca entre a moeda metropolitana e a moeda internacional atenda estritamente a seus conteúdos metálicos.

No capítulos 8 (Capitalização e nível de renda na colônia açucareira) as estimativas do valor do capital dos engenhos, do valor imobilizado em mão-de-obra escrava, do valor do capital fixo e da renda que se gerava na colônia estão representadas
em libras esterlinas. Contudo, Furtado volta a se referir à relação de troca entre a moeda nacional e a libra esterlina nos momentos em que discute a decadência da economia canavieira, já que ela se fez acompanhar de forte desvalorização da moeda portuguesa. Por exemplo, no capítulo 11 (Formação do complexo econômico nordestino), ao efetuar uma estimativa da perda de renda na colônia e salientar as dificuldades de as unidades produtivas ao menos reporem o capital depreciado, acrescenta a ressalva: “É provável ... que a forte desvalorização da moeda portuguesa haja contribuído para manter o sistema em condições de, pelo menos, preservar sua capacidade produtiva”(FEB, p. 103, rodapé).

Ao tratar novamente das desvalorizações cambiais que sucederam a queda de receita de exportação do açúcar, no capítulo 12 (Contração econômica e expansão territorial), admite que as desvalorizações protegeram o setor açucareiro e agravaram a
situação das demais regiões, “... que pouco ou nada tinham para exportar e cuja procura de importações era altamente inelástica pelo fato mesmo de que se limitavam a coisas imprescindíveis, como o sal.” (FEB, 112) Presume-se, então, que havia circulação de moeda nacional e aquisições em moeda nacional – algo que foge à representação esquemática do fluxo de renda na economia açucareira. Aliás, no mesmo capítulo Furtado assinalara as dificuldades em transferir para a metrópole tributos – pagos em moeda nacional – e a “... crescente escassez de numerário na colônia” (FEB, 112). Há aqui uma referência à questão cambial e à circulação de moeda nacional no território. Vale ressalvar, uma vez mais, que a admissão de que a desvalorização tenha dado proteção ao setor açucareiro implica a possibilidade de comprar bens nacionais em moeda nacional.

Uma nova menção à questão cambial, ainda no âmbito da economia escravistaexportadora, ocorre em contexto totalmente diferente. Furtado trata no capítulo 17 (Passivo colonial, crise financeira e instabilidade política) das dificuldades econômicas
do país imediatamente após a independência. Os déficits públicos produzidos pelas campanhas militares foram financiados com emissão de papel moeda, o que repercutiu na taxa de câmbio (agora, relação mil-réis / libra esterlina).

A questão cambial volta à tona nos capítulos seguintes. No capítulo 18 (Confronto com o desenvolvimento dos EUA) Furtado discute as conseqüências da exclusão da intermediação de Portugal nos negócios internacionais e da preponderância da Inglaterra no comércio exterior brasileiro. Conclui que a baixa de preços dos produtos importados, produzida pelas facilidades de transporte e pela exclusão da intermediação portuguesa, a já referida cobertura de déficits orçamentários com emissão, bem como a ausência de fluxos de capital, provocaram forte desvalorização da moeda, em uma situação em que o governo não elevara a proteção aduaneira. Finalmente, no capítulo 19 (Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX), Furtado volta a discutir o declínio das exportações nacionais. Na primeira metade do século XIX as exportações cresceram a taxas baixas e ocorreu ainda deterioração dos termos de intercâmbio. Tendo sido o crescimento populacional
superior ao das exportações, a ausência de desenvolvimento de um setor de produção para o mercado interno teria provocado um declínio sensível da renda per cápita.

Vale lembrar que, a despeito da permanência do regime exportador-escravista, o quadro institucional após a independência é outro. O governo local tem condições de se financiar por emissão. As relações comerciais com a Inglaterra, sólidas desde o século XVIII, tornaram-se dominantes com a vinda da família real. A Inglaterra, por sua vez, era o líder incontroverso do comércio mundial e a libra esterlina a verdadeira moeda internacional.

5. A taxa de câmbio na economia cafeeira

A dinâmica cambial muda totalmente na segunda metade do século XIX, por diversas razões. Em primeiro lugar, por ter ocorrido uma transformação radical no mercado de trabalho, com o fim da escravidão. A economia do café do noroeste paulista 13 foi o primeiro setor produtivo a empregar grandes contingentes de mão-de-obra nãoescrava.

Em segundo lugar, as exportações de café atingiram valores significativos e o Brasil exerceu uma posição ímpar, quase monopolista, na oferta do produto no mercado internacional. Se adicionarmos a estes dois elementos o peso político dos cafeicultores no Segundo Reinado e na Primeira República, estão postas as condições para o exercício de fortes pressões dos produtores sobre a política governamental. A taxa de câmbio, deste modo, tanto sofreria a influência de fatores “naturais” (volume das exportações e preços no mercado internacional) quanto de fatores associados ao manejo da política econômica. São estes os elementos contemplados na análise da dinâmica cambial nos capítulos 20 (Gestação da economia cafeeira) e, em especial, 25 (Nível de renda e ritmo de crescimento na segunda metade do século XX), 26 (O fluxo de renda na economia de trabalho assalariado), 27 (A tendência ao desequilíbrio externo) e 28 (A defesa do nível de emprego e a concentração da renda)(17*).

De acordo com Furtado, o quadro geral da economia brasileira de meados (anos 1840) ao final do século (1890) indica uma expansão de 214% no quantum das exportações e uma melhora de 58% nas relações de troca. À parte os efeitos notáveis
sobre a renda do setor exportador, o volume de exportações e a melhora dos termos de
troca provocaram uma forte apreciação da moeda nacional (18*).

Essa elevação da renda do setor exportador foi, no quarto final do século XIX, acompanhada por uma decisiva mudança no formato do fluxo de renda, em decorrência da massificação do mercado de trabalho livre. Já vimos o núcleo da argumentação de Furtado a respeito dos impactos do emprego de mão-de-obra livre na renda e no mecanismo cambial: no momento em que se converte uma parte expressiva da renda de exportação em despesas efetuadas em moeda nacional, a plena atuação do multiplicador fortalece o mercado interno e introduzem-se modificações na acomodação do país às variações de renda do exportador.

O capítulo 27 de Formação Econômica do Brasil retoma a discussão das dificuldades de adaptação das economias primário-exportadoras aos princípios do padrão-ouro. Os argumentos são semelhantes aos que haviam sido expostos nos trabalhos anteriores, mas vale destacar a extensão e o vigor da crítica à visão econômica convencional sobre balanço de pagamentos. Nos dois longos parágrafos finais do capítulo, após explicar as diferenças nos padrões de ajustamento a crises cambiais nos
países desenvolvidos e não-desenvolvidos, Furtado chega a se referir à “... inibição mental para captar a realidade de um ponto de vista crítico-científico ... particularmente óbvia no que diz respeito aos problemas monetários”. (FEB, 230) Pode-se dizer que o modelo de análise econômica e abstração da história de Furtado converte-se de modo aberto em crítica à ideologia econômica.

Nota:
17 Furtado dedica quatro capítulos (21,22,23,24) ao “problema da mão-de-obra”, vale dizer, à formação do mercado de trabalho assalariado.
18 A paridade legal teria passado de 67,5 pence na época da Independência a menos de 30 pence na segunda metade do século XIX (FEB, 235, rodapé).


Os políticos e os formuladores de política econômica também são incluídos no rol dos que se deixavam levar pela ideologia da estabilidade associada ao padrão-ouro. Conforme Furtado, os políticos não percebiam que o que entendiam como “patológico”
– a inconvertibilidade, as dificuldades de adaptação às regras do padrão-ouro, os déficits – expressava a dificuldade, ou impossibilidade, de as economias primário-exportadoras adotarem a política de convertibilidade irrestrita(19*)

Na verdade, por mais que o horizonte doutrinário dos governantes na República Velha fosse o modelo do padrão-ouro, eles não eram cegos às dificuldades e tampouco, a despeito da força dos interesses pró-desvalorização, puderam fugir de restrições políticas e econômicas, duas dos quais especialmente fortes. Por um lado, o crescimento da economia urbana e a inclusão das classes médias urbanas no jogo político-eleitoral, criou um grupo político extremamente sensível à desvalorização e à inflação a ela associada. Este tema é tratado no capítulo 29 (A descentralização republicana e a formação de novos grupos de pressão).

Além disso, as restrições orçamentárias, presentes ao longo do ciclo cafeeiro e intensas na Primeira República, frequentemente colocavam os governos em xeque. Como os orçamentos públicos eram onerados pelo serviço da dívida externa, as desvalorizações cambiais agravavam as condições orçamentárias e acabavam por exercer um impacto expansionista na política monetária, estimulando uma indesejada inflação.20 Havia, portanto, restrições de toda ordem – políticas, fiscais, monetárias – à manutenção da proteção aos cafeicultores mediante desvalorizações cambiais. No
capítulo 29, Furtado deixa claro que a política cambial e fiscal executada por Joaquim Murtinho no governo Campos Salles (1898-1902) representou uma espécie de término às práticas irrestritamente pró-cafeicultores da política econômica(21*). A rigor, para Furtado, foram as dificuldades em manter a tradicional proteção ao setor exportador via desvalorização que estimularam a saída alternativa e estruturada dos planos de valorização do café, que tiveram início em 1906 – um tema tratado no capítulo 30, que já pertence à Parte Cinco de Formação Econômica do Brasil (22*)

Nota:
19 “... não se fez nenhum esforço sério para compreender tal anormalidade, que em última instância era a realidade dentro da qual se vivia.” (FEB, 230)
20 Fritsch (1988) desenvolve extensamente o problema (apontado por Furtado) das restrições à política econômica durante a República Velha.
21 Após se referir à intranqüilidade social e política provocada pela depreciação cambial do último decênio do século XIX, Furtado conclui: “A partir de 1898 a política de Murtinho reflete um novo equilíbrio de forças.” (FEB, 247)
22 Tema detidamente tratado por Delfim Neto (1954).


Em relação aos textos históricos que o antecederam, Formação Econômica do Brasil tem como pontos fortes o tratamento detalhado conferido à política econômica do café, assim como a ampliação da discussão do significado político das crises
exportadoras. Ainda na Parte Quatro, Furtado retoma com mais detalhes sua análise dos mecanismos de transferência de renda implícitos aos movimentos da taxa de câmbio, que redundam em “socialização das perdas”.

A tese é conhecida. Se a desvalorização cambial representa um prêmio aos exportadores, impõe simultaneamente um ônus à população em geral, na medida em que os produtos importados adquirem um peso significativo nas cestas de consumo urbanas. Como Furtado expõe didaticamente: “ O processo de correção do desequilíbrio externo significava, em última instância, uma transferência de renda daqueles que pagavam as importações para aqueles que vendiam as exportações”. (FEB, 237) O corolário desta tese sobre transferência de renda é a idéia de “socialização de perdas” produzida pela
desvalorização cambial.23 Ressalte-se que a “socialização de perdas” é considerada, uma vez mais, um resultado incontornável e não tão negativo, já que um ajustamento “natural” da economia à crise externa - contração brusca da renda, dos lucros e dos investimentos dos exportadores - representaria um corte das rendas salariais. A desvalorização cambial, deste modo, constitui também um instrumento de defesa do nível de emprego e de limitação dos “efeitos secundários da crise”. (FEB, 241)

Do mesmo modo, Furtado acentua o ônus para a população representado pelos episódios inflacionários provocados pela emissão de papel moeda por governos com dificuldades de financiamento. Dois momentos de elevada emissão são especialmente mencionados. Ao final do Império, a emissão decorreu da ineficiência do sistema fiscal


23 “Como as importações eram pagas pela coletividade em seu conjunto, os empresários exportadores estavam na realidade logrando socializar as perdas que os mecanismos econômicos tendiam a concentrar em seus lucros”. (FEB, 238)

em prover recursos para servir à dívida externa, contraída para a defesa do câmbio, em uma insustentável tentativa de garantir a convertibilidade. No início da República, a expansão do crédito do período do Encilhamento também redundou em depreciação cambial e crise inflacionária.

6. A crise da economia cafeeira e a industrialização

Na visão de Furtado, a ruptura do padrão primário-exportador seria efetivada no contexto de uma grande crise, a de 1929. O papel da política econômica, em geral, e da política cambial, em particular, na ruptura do padrão primário-exportador e na
conformação de uma economia de base industrial, talvez represente o ponto culminante de Formação Econômica do Brasil.

Na Parte Cinco de Formação Econômica do Brasil (Economia de Transição para um Sistema Industrial – Século XX), Furtado apresenta em sete capítulos suas clássicas teses sobre a crise da economia cafeeira e emergência de um sistema industrial. Os capítulos 30 (A crise da economia cafeeira), 31 (Os mecanismos de defesa e a crise de 1929) e 32 (Deslocamento do centro dinâmico) tratam da política do café e da expansão da lavoura nas três primeiras décadas do século XX, dos impasses trazidos pela queda dos preços e pela contração do comércio internacional nos anos 1930 e, finalmente, dos estímulos dados à indústria local em função da crise propriamente dita e das políticas adotadas para a ela se contrapor. Estes capítulos mantêm-se, por assim dizer, no espírito da obra: grandes traços de abstração, aplicação da análise econômica à
reconstituição da história e um olhar acurado à política econômica e ao novo quadro social formado pela emergência do assalariamento e de uma economia urbana de certa expressão.

Os capítulos 33 (O desequilíbrio externo e sua propagação), 34 (Reajustamento do coeficiente de exportações), 35 (Os dois lados do processo inflacionário) e 36 (Perspectiva dos próximos decênios) abordam os desdobramentos do processo de
industrialização em condições de restrição cambial, os impactos das diversas políticas cambiais adotadas a partir dos anos 1930, a conexão entre restrições cambiais e inflação e, finalmente, as características e impasses de uma economia cujo centro dinâmico deslocou-se para o mercado interno sem extinguir a dualidade estrutural. Estes capítulos têm um tom específico, pois nem seguem a norma geral de construção de grandes abstrações e nem mergulham no detalhamento das políticas. Furtado efetua uma 17digressão geral sobre as restrições cambiais, seus impactos sobre a indústria e efeitos
inflacionários.

Tanto em uma quanto em outra situação – na reconstrução de abstrações históricas ou na apresentação de dilemas contemporâneos – a questão cambial ocupa um papel decisivo. Os argumentos dos capítulos 30, 31 e 32 são bem conhecidos e, por outro lado, representam uma versão desenvolvida e mais detalhada de idéias apresentadas em A Economia Brasileira. Por essa razão, na apresentação sucinta da crise de 1929 e seus desdobramentos, a seguir, apenas os elementos mais expressivos ou inovadores serão destacados.

Furtado considera que a inflação de crédito do último decênio do século XIX estimulou os investimentos na cafeicultura, ao mesmo tempo em que a depreciação cambial preservou a remuneração dos produtores em moeda nacional, diante da queda
de preços provocada pela crise mundial de 1893. A resistência dos consumidores urbanos impediu que uma nova crise, em 1897, viesse a ser contornada pelo tradicional instrumento cambial. A combinação entre queda de preços e elevação da oferta impulsionou os debates sobre uma nova solução, a de administração de oferta por retenção de estoques, finalmente adotada em 1906 e perseguida com sucesso por duas décadas.

Dois elementos básicos explicam o sucesso da política. Em primeiro lugar, a influência da elite cafeeira sobre os governos de São Paulo e da União permitiu a mobilização de recursos para a formação de estoques. Em segundo lugar, a condição de
ofertante quase-monopolista garantiu ao país o sucesso da política, cujos traços básicos eram a compra de excedentes com financiamento externo (a dívida seria servida por impostos arrecadados na venda do café) e o gerenciamento da oferta no mercado internacional. Por não ser acompanhada de medidas complementares de restrição à expansão da lavoura, a política de proteção do café levou a uma contínua elevação da oferta. A crise mundial de 1929 pega-nos exatamente nesta situação: a retração na demanda e nos preços internacionais, assim como a cessação dos financiamentos externos, evidenciaram o imenso desequilíbrio entre oferta e demanda que levou a produção cafeeira (bem como o país) a uma crise sem precedentes.

A discussão que se segue é clássica. Diante das alternativas de admitir a derrocada da lavoura cafeeira até o restabelecimento de um equilíbrio natural entre oferta e demanda, ou garantir a compra da produção para impedir a queda brusca do nível de renda na lavoura cafeeira, o governo optou pela última. A alta da taxa de 18câmbio preservou os produtores, apesar da queda de preços, porém, o equilíbrio entre oferta e demanda não foi restabelecido de modo natural – retração da oferta em decorrência de prejuízos contínuos dos cafeicultores. A destruição dos estoques excedentes em mãos do governo foi o fator que garantiu a obtenção de um equilíbrio no mercado a preços mais elevados do que os que prevaleceriam no caso de um ajustamento natural. Uma solução extrema, a evidenciar os limites do mecanismo de defesa através da taxa cambial em situações extremas(24*).

A preservação da renda do cafeicultor sustentou o nível de emprego na lavoura e em toda a economia. O programa governamental de compra do café pode ser vista como uma vigorosa política anti-cíclica de grande eficácia, pois a economia brasileira recuperou-se já a partir de 1933. O problema principal passa a ser a indisponibilidade de divisas, ou melhor, a incompatibilidade entre o coeficiente de importações modelado pelas condições pré-crise e a possibilidade de acesso a mercadorias importadas. A procura dirige-se aos produtos nacionais, favorecidos pelos preços relativos dispostos pela nova taxa de câmbio. A recuperação da renda aprofunda o desequilíbrio externo e é nessa situação de relativa proteção produzida por uma moeda muito depreciada que se desenvolve a produção local de bens industriais.

A superação da fase aguda da crise e a reação do mercado internacional para diversos produtos primários, ainda nos anos 1930, não chega a por em cheque a dinâmica de crescimento baseado no mercado interno, porque as restrições cambiais
prevaleceram ao longo de quase toda a década. O crescimento da demanda interna torna a própria indústria uma demandante de bens de capital produzidos localmente. Enfim, o crescimento da renda repõe os desequilíbrios no balanço de pagamentos e assegura os mercados para a produção local, a um novo nível de preços. A novidade da situação, de acordo com Furtado, reside na criação de concorrência, ou na formação de um só mercado, para dois setores que antes não concorriam: produtores internos e importadores. Nesse momento desaparece a eficiência da política cambial como instrumento de defesa da velha economia primário-exportadora(25*) A política cambial passará, cada vez mais, a ser condicionada pela defesa da produção local.

Nota:
24 “... o mecanismo do câmbio não podia constituir um instrumento de defesa efetivo da economia cafeeira nas condições excepcionalmente graves criadas pela crise que estamos considerando.” (FEB,266)
25 Nas palavras de Furtado, “Ao começarem a concorrer os dois setores, as modificações na taxa cambial passaram a ter repercussões demasiado sérias para que fossem abandonadas às contingências do momento”. (FEB, 284/285)


É este o quadro dominante ao final dos 1930, quando, a despeito de flutuações, a taxa de câmbio era a mesma do início da década. Ao início da década de 1940, no entanto, a guerra passa a proporcionar um acúmulo de reservas cambiais ao Brasil. A reação do governo foi inovadora e atendeu ao interesse dos exportadores e dos produtores para o mercado interno: fixar a taxa cambial aos níveis pré-guerra. Cria-se, de acordo com Furtado, uma situação inusitada: “... enquanto aumentava o número de compradores e diminuía a oferta de mercadorias, o Brasil fixava o valor externo de sua moeda em um nível de preços relativos que refletia a situação do decênio anterior...”. (FEB, 288) A situação favoreceria as atividades ligadas ao mercado interno, porém, como a estrutura da procura externa sofrera modificações, houve deslocamento de fatores na economia em favor dos produtos que encontravam mercado no exterior. Agravam-se os desequilíbrios internos na economia e produz-se uma situação inusitada de sustentação do nível de renda monetária como se a situação fosse a mesma da década
anterior. Criou-se um fluxo de poder de compra na economia, sem uma contrapartida na oferta de bens e serviços, ou um incremento da renda monetária do setor exportador em condições de restrição da oferta de produtos importados. Em síntese,: “... o valor dessas reservas cambiais era aproximadamente igual ao excesso da renda criada no setor exportador sobre a contrapartida de bens e serviços importados. Reduzindo-se o valor daquelas reservas, se reduziria em igual montante o excesso de renda monetária sobre a oferta de bens importados.” (FEB, 292) A impossibilidade de importar acumula as
reservas monetárias e o desequilíbrio entre o nível de renda monetária e a oferta de bens e serviços provoca elevação de preços. Na impossibilidade de se corrigir o desequilíbrio congelando parte da renda monetária excedente (tributos, bônus de guerra), ou por via de administração de oferta e demanda, o desequilíbrio entre a oferta e a renda monetária redundou em inflação. E como os preços dos produtos exportados superam a inflação interna (e a elevação dos custos de produção), os exportadores obtiveram ganhos de renda.

Conforme Furtado, o ocorrido no período de guerra explica as transformações da economia brasileira no pós-guerra. Os preços internos elevaram-se bem mais do que os dos produtos importados. Houve uma “... subversão do nível relativo de preços que
havia servido de base para o desenvolvimento industrial desde o começo dos anos 30.” (FEB, 299) Ocultou-se a revalorização da moeda brasileira com o controle de câmbio. Na ausência de um substancial aumento de produtividade dentro do país, qualquer 20alteração da taxa de câmbio comprometeria a estrutura econômica fundada sobre uma moeda desvalorizada.

Foi o que ocorreu ao término da guerra, quando as importações foram liberadas e em conseqüência o coeficiente de importações elevou-se bruscamente. O desequilíbrio gerado pelo aumento das importações só poderia ser corrigido por uma nova desvalorização cambial ou pela imposição de controles às importações. A adoção da segunda alternativa redundou em um controle seletivo de importações. Punia-se a importação de bens de consumo e favorecia-se a importação de bens de capital e matérias-primas. Este controle, naturalmente, protegeu por dois lados (ausência de concorrência e equipamentos e matérias-primas baratas) a indústria de bens de consumo. O setor industrial foi beneficiado por uma baixa seletiva dos preços de bens importados(26*)

O aumento dos investimentos industriais explica a expansão da economia no pós-guerra. Diversos instrumentos de controle adotados a partir do final dos anos 1940, todos em resposta às restrições cambiais, estimularam a produção para o mercado
interno. A política cambial converteu-se assim em um instrumento-chave na constituição da indústria brasileira e na sustentação de um processo de crescimento induzido pelo mercado interno.

Nota:
26 “A política cambial, baixando relativamente os preços dos equipamentos e assegurando proteção
contra concorrentes externos, criou a possibilidade de que esse enorme aumento de produtividade
econômica fosse em grande parte capitalizado no setor industrial”. (FEB, 309)



REFERÊNCIAS

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The Macmillan Press, 1988.
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Furtado, C. Economia Colonial no Brasil nos Séculos XVI e XVII. São Paulo, Hucitec/ABPHE, 2000.
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Huddle, D. L. “Balanço de pagamentos e controle de câmbio no Brasil, diretrizes políticas e história, 1946/54”. In: Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, vol. 18, no 1, 1964.
Prebisch, R. El Patron Oro y la Vulnerabilidad Economica de Nuestros Paises.
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Prebisch, R. The Economic Development of Latin América and Some of its
Principal Problems. Santiago, CEPAL, 1949.

Fonte: http://www.fea.usp.br/feaecon//media/fck/File/Mauricio_Coutinho.pdf

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